15.9.05

Cocaína e leite de magnésia

Tossi. Os olhos cerrados e aquela sensação de parto às avessas tomou conta do meu peito. Não que eu soubesse como era um parto, mas o incomodo gerado trouxe essa expressão em minha mente – não me pergunte, não sei onde a ouvi. Olhei para a palma da mão que usei para tapar a boca. Parecia que eu tinha cuspido meu pulmão, mas em cubos escarlates. Uma leve sensação de ânsia se apossou de mim, mas a tosse foi mais rápida que o vômito e lá fui eu botar mais uns cubinhos, mas dessa vez não tive coragem de segurá-los com a mão. Fiz meu castelinho de mim mesmo bem ali no chão, no ladrilho branco do banheiro.

Levantei o rosto e um filetinho de sangue escorria pelo meu nariz. Nada muito sério, resolveria ele rapidamente com um algodão bem posicionado. Agora eu tinha cubinhos de muco sangrento pelo chão e uma cara de buceta menstruada. Escovei os dentes para tirar aquele gosto que fazia meu estômago girar. Não adiantou muito, as gengivas sangraram e, bem lá no fundo de minha consciência (sim, amigos, ela estava viva), alguma coisa gritou que era hora de eu parar.

Aprendi a não ouvir esses avisos. Por quê? Simples, quando algo assim grita no fundo da sua mente é porque realmente tinha algo errado acontecendo. Melhor então ignorar, já que eu estava pouco me fodendo se eu iria viver para ver o amanhã – minha vida é feita de agoras, não é mesmo?

Limpei a sujeirada da melhor maneira que consegui, afinal, estava podre por dentro, mas não precisava deixar a minha casa um espelho da minha saúde. A briga entre consciência e desejo acabou tomando conta de tudo, porra, agora meu pau não subiria se eu sentisse uma cóceguinha na garganta! O que viria em minha mente não seria aquela propaganda do “bichinho do ram-ram”, mas sim a cena nojenta dos pedaços de mim espalhados por meu banheiro. Merda!

Resolvi anestesiar um pouco a consciência e, por conseqüência direta, dar um jeito na dor que me cravava o peito com suas garras incômodas. Abri o freezer velho e retirei de lá a minha sagrada garrafa de vodka. Ah! Santa vodka, remédio para todos os males! Curava desde frieira até dor na consciência, melhor que qualquer outro remédio comum. Afinal, era só tomar minhas três ou quatro doses que logo tudo virava passado ou deixava de existir da forma chata de sempre – tudo ficava mais colorido, mas caso não ficasse era só pedir ajuda pras anfetaminas dentro da terceira gaveta do armário da cozinha.

Como eu adorava fugir de mim mesmo, afinal, eu sempre ganhava no final (sim, isso é uma visão otimistas, pois otimismo é a melhor forma de encarar o meu banheiro as seis horas da manhã de um domingo).

Sentei-me à frente da televisão. Desligada. Droga! Odeio esquecer de ligar o maldito botão antes de enfiar a bunda no sofá de couro e branco impecável (tudo bem, ele nem está tão limpo assim, algumas manchas coloridas eu nem sei de onde vieram, mas as amareladas eu nem quero saber mesmo). Não odeiam quando o controle remoto fica tão distante quanto a televisão.

Cinco passos é muito para quem está acostumado a trocar apenas de nádega que faz fricção na almofada.

Levantei irritado, apertei o botão da TV com o dedão do pé antes de sentar novamente. O controle da maldita em uma mão e o do som na outra. Liguei o som em uma rádio de notícias qualquer, afinal, é bom ter assunto quando falar da roupa alheia não tiver mais graça. Na TV fiquei zapeando pelos canais da “televisão a gato” (claro que eu não pagaria por televisão que cobra para exibir mais propaganda – nasci looser, mas não tão otário assim). Garfield, morra de inveja.

Iniciei o meu processo de absorção de cultura inútil que antecedia o meu dia de trabalho. Bob Esponja, Martin Mistery, Samurai Jack, Meninas Super-Poderosas, MTV, Smallvile, Buffy e o que mais pudesse ser visto entre as 10 e 12 horas de um dia de semana.

Meu relógio despertou no quarto - soava mais irritante que um sinal de escola acabando com a hora do recreio. Fui até o banheiro, abri a segunda gaveta e tirei dois saquinhos de lá. Eram os “restos de ontem a noite”, como diria um amigo meu. Sobraram dois sininhos lindos embrulhados sem mácula alguma de toque junkie algum. Eram cinquenta reais só meus, eram cinquenta notinhas empilhadas de trabalho suado moídas e encarceradas em pó branco nada legal. Abri os dois pacotinhos com os dentes, as gengivas sangraram com esse movimento. Cuspi a ponta do saquinho, com um pouco de sangue, na pia do banheiro. Abri o papel higiênico e sequei a grande pia de mármore (por isso eu adoro apartamentos antigos). Bati um saquinho após o outro na superfície negra, seca e convidativa. Fiz o meu passeio no parque poeirento e branco. Liguei o cérebro em modo turbo, mas alguma coisa não me estava fazendo bem. Talvez tenha sido o copo de leite que tomei e esqueci de mencionar, mas poderia ser também aquele monte de complemento vitamínico que eu engulo pra compensar a má alimentação e os litros de vodka que consumo semanalmente.

Meu estômago dava loopings. Maldito. Maldito. Então resolvi apelar! Já que era para viver de maneira onde de natureba só entrasse no meu corpo o suco de laranja que eu bebia quando pedia um hi-fi ou um Sex on the beach, que assim continuasse sendo!

Farmácia. Drogaria. Grande invenção dos tempos modernos! Grande ícone da modernidade lisérgico-utópica mais próxima de Blade Runner impossível. Nada como notinhas para dar um balão no receituário – pra que receita médica, o dinheiro pode e compra tudo (mesmo que duas notsa de vinte reais não sejam dinheiro de fato elas fazem as suas mágicas).

Analgésico pra dor de cabeça. Pasta de dente com bicarbonato para a gengiva sangrando. O famoso Eparema-marca-registrada. Duas ampolas do afamado Epocler-marca-também-registrada-dez-eme-ele. Na saída ainda me lembro de uma receita da vovó: para problemas de estômago e enjôo, leite de magnésia na cabeça! Só que eu não me lembrava se era pra isso ou pra desentupir pia, mas qual seria o problema, não é mesmo?

Cheguei em casa e comecei a engolir o meu complemento de saúde. Se eu não tinha uma vida regrada, que viessem a mim as regras das bulas, afinal, elas eram tão minúsculas que já não importavam muito.

Mandei ver com gosto. Um remédio por vez. Acho que deveria ter organizado eles por ordem alfabética. Depois de engolir todos eles me senti aliviado.

Minha pseudo-tranqüilidade durou o suficiente para eu sentir os efeitos de tudo batendo pesado lá no fundo da minha alma. Sim, queridos, o coquetel atravessou as paredes do meu ser. Agora eu não tinha mais cérebro. Tenho certeza, meus amigos, não foi a cocaína ingerida antes da salada de coisas que coloquei pra dentro pra resolver os estragos que fiz em mim mesmo nestes últimos meses – ou seriam anos?

O baque foi grande. O estômago já não girava mais, agora ele se divertia pulando para todos os lados. Meu pulmão apertava feito uma cueca justa em dia de calor. Eu suava frio. Tão frio que dava vontade de me atirar em um copo de vodka pra ver se economizava uma grana com a geladeira.

Tum. Não deu outra, tudo bateu mais uma vez e o destino era certo. No meu cérebro soou aquela campainha de aeroporto ou de estação de metrô: - Tim, atenção senhores passageiros, vôo com destino a Privada na Plataforma 1.

Pronto. Lá fui eu colocar a alma para fora.

A grande lição que eu havia aprendido com a vovó estava errada. Com certeza! O que aconteceu foi que o negócio que eu havia colocado pra dentro com certeza havia batido de uma vez e eu já estava com o fígado zoado. Encostei as mãos na privada e chamei o Hugo, o Seu Jorge, o Betão e todos os nomes que lembrem onomatopéias regurgitantes.

Acho que isso serviu para eu crescer como indivíduo. Depois dessa cena minha vida ganhou outros parâmetros. Agora eu sabia bem para onde caminhar e que deveria mudar alguns conceitos. Tirei uma grande lição e poderia me considerar um ser humano melhor.

Em meu ímpeto por purificar meu corpo acabei fazendo uma grande cagada. Na verdade, a cagada veio depois. O que antecedeu isso tudo foi o meu escorregão no tapete molhado do banheiro – culpa da torneira aberta que eu deixara antes de ir pra farmácia, que por sua vez só transbordou porque eu estava tão chapado na noite anterior que joguei papel higiênico na pia e não no lixinho do banheiro; resultado, meleca escorregadia pra todo lado. Com o escorregão perdi o equilíbrio. Cabeça na privada. Desmaio. Algumas horas dormindo. Ninguém em casa.

A lição da vovó realmente se mostrou errada. Depois eu iria lembrar que ela dizia: “Leite de magnésia é importante como antiácido e laxativo”. Porra! Ao invés de utilizar água ou leite para tomar os comprimidos eu bebi meio vidro do leitinho da vovó. Nem preciso dar o saldo depois de algumas horas dormindo pra vocês terem uma noção da imagem escatológica que ficou pintada no chão branco de meu banheiro.

No chão havia uma massa de sujeira e, se você olhasse com muita atenção, estava eu lá, perdido no meio das manchas que variavam entre o lilás e o marrom. Merda, vômito e sangue, era a visão mais intima que alguém poderia ter de mim mesmo – até eu! Acordei com um sorriso torto, dor de cabeça e com a sensação que haviam comido o meu cu durante uma noite inteira – sem contar o aroma maravilhoso de mendigo que exalava do banheiro. Acordei a tempo de limpar todo o estrago sem que sobrasse resquício além do galo em minha cabeça e o dia que tive que matar na locadora de vídeos.

Porém, nada é por acaso e sempre temos um prêmio, por maior, mais fedida e chocante que a merda seja!

Sabe quando você tem aqueles momentos de iluminação quase que divina em sua vida? Esse era um deles! Acho que Buda se sentiu assim quando sentou as nádegas na pedra e encontrou o Nirvana. Agora quem encontrava a saída do Samsara era eu! Morram de inveja, falsos profetas! Queime de raiva, INRI Cristo.

E a fonte da minha iluminação podia ser sintetizada tal como um mandamento, porém, ainda prefiro a gramática mais contemporânea. Minha lição, caríssimos, é:

“Nunca misture leite de magnésia com cocaína”.


Por Poe Bellentani (me)

P.S.: Isso aí em cima é ficção, peloamordeDeus!!!! Não quero ligações desesperadas, e-mails questionadores ou olhares "meu, o que você está fazendo da sua vida?". Separem os "eus poéticos", please! :D

Um trecho de Alice talvez fale mais hoje.

Depois de um tempo ela ouviu pisadinhas ao longe e rapidamente secou os olhos para ver o que vinha vindo. Era o Coelho Branco voltando, muito bem vestido, com um par de luvas brancas em uma mão e um grande leque na outra: ele vinha trotando com muita pressa, resmungando consigo mesmo: “Oh! Ela vai me matar se eu a fizer esperar!”.

Alice sentia-se tão desesperada que estava pronta para pedir ajuda a qualquer um: então, quando o Coelho chegou perto dela, a menina começou com uma voz baixa, tímida: “Por favor, Senhor...”. O Coelho parou violentamente, derrubando as luvas brancas e o leque, e disparou em direção à escuridão tão rápido quando pôde. Alice apanhou o leque e as luvas, e, como a sala estava muito quente, começou a abanar-se enquanto falava:

“Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é “Quem sou eu?”. Ah! Esta é grande confusão!”. E Alice começou a pensar em todas as crianças que tinham a mesma idade dela, para ver se tinha se transformado em alguma delas.

Tradução de Clélia Regina Ramos

13.9.05

Hoje eu gostaria de fazer uma elegia, mas por alguns motivos não o consigo.

O primeiro é que meu humor não permite lamentações, gostaria de fazê-las mas tudo o que posso fazer é seguir adiante pulando pelos campos e jogando as migalhas para eu voltar para casa depois (não se preocupem, os passarinhos não vão comer as migalhas, mas se o fizerem eu vou seguir os corpos dos bonitinhos - o pão está envenenado).

O segundo motivo é que não ando muito literato, quer dizer, até ando, mas bem mais prosa do que verso. Não consigo colocar linhas em cima das outras e nem fazer poemas blocados - minha mente pensa de forma textual objetiva, mesmo que criando metáforas e imagens que brinquem com a sonoridade. A poesia nasce de outras maneiras em minha vida: quando eu acordo e olho para o lado tenho motivos o suficiente para fazer versos, mas prefiro beijar delicadamente um rosto e passar alguns minutos fitando as linhas que me deixam assim, bobo.

Só que fica a vontade ainda de fazer a elegia maldita. Queria fazer uma elegia a algo que ficou para trás, um personagem público que se aposentou da vida. Esta figurinha está quase deixando saudades, mas ela não tem nome reconhecido, apenas uma face que eu sei bem. O meu desejo é fazer uma elegia ao meu passado, ao meu eu de ontem, ou melhor, de um ano atrás. Sai da crisálida da melhor maneira possível dessa vez - quando me vi borboleta já estava voando ao lado de outra que também procura as mesmas coisas (ou segue o mesmo vento norte).

Não vou deixar versos, nem vou fazer a homenagem, afinal, algumas coisas eu ainda vou arrastar. Só que eu não tenho esqueletos no armário.

Só que eu ainda suspeito que deveria fazer uma elegia a um coração morto, ou melhor, a uma casca que ficou jogada no canto e eu jurava ser coração. Hoje ele palpita mais forte do que o imaginado, acho que eu estava é guardando os sentimentos no pulmão - sorte que me deram cigarros.

Encerro-me hoje, sem verso e sem elegia, vou é continuar neste meu reino mágico. Só preciso da Lagarta, do Chapeleiro, da Rainha de Copas e da televisão.

Boa subida, eu desço.