30.3.10

Diálogo com a Roda

Não tive muitos motivos
Para fingir que não sinto.
Porém, vi dois vícios
Armados com a razão:

- Não há mistério, nem perdão.

Maltrapilho bem trabalhado
No mal caminho seguido,
Fez-se essa a razão das horas
E a alma se mostrou pronta
Para levar as alegorias a sério:

- Não há perdão na miséria.

Afastei-me então da humanidade,
Aposentei tudo o que é frágil
E construí um muro de plástico.
Forrei-me de isopor e borracha,
Isolei-me entre concreto e vácuo.

No final, veio a ironia
Do destinho travesso que devora,
Sem pressa e com paciência,
Todas as oportunidades bem quistas:

Definhei por falta de ar e comida,
Pois meus braços atados
Não ficaram à vista.

Tradução Livre

Olhou com calma para a legenda congelada na tela. Tinha a mania de assistir filmes com as legendas originais. Se o filme era francês colocava-as em francês, fazia o mesmo com o inglês e o espanhol. Tentou fazer o mesmo com um filme em alemão, mas mostrou aí a sua limitação – afinal, tentativa e erro é sempre o que move a vida, principalmente daqueles que preferem aprender sozinhos, observando e ouvindo.

Hoje havia uma frase perdida lá, não tinha contexto, era apenas um good morning pulsante, com um fundo berrante de neon com duas pessoas passando. Significado? Nenhum, apenas uma imagem perdida dentro de um longa sem muito conteúdo feito para orgasmo de uma equipe de pseudo-intelectuais que se achavam pseudo-gênios.

Tiago sorriu de canto. Como se divertia com esses pensamentos revoltosos e se achava mais pseudo-gênio que os que julgava. Foi até a cozinha, abriu a garrafa de vodka fechada que havia comprado já fazia uns meses. Encheu o copo: dois dedos de vodka, meio copo de suco de cassis. Lá estava uma bebida sofisticada, jazendo fria dentro de um copo de requeijão. Pra fechar, cinco pedras de gelo em formato de pinguim.

Sua têmpora pulsava, os dentes rangiam e as unhas já estavam tão bem aparadas que nem pareciam ter sido devoradas pela compulsão desenfreada. Duas horas acordado, tentando digerir o que nem havia descido direito por sua garganta.

Foi até o quarto e olhou para a silhueta que dormia embaixo dos lençóis. Pensou no que aquilo significava e porque se dava a liberdade de sofrer pequenas mortes sem sentido toda vez que estava deprimido. Fritou alguns neurônios no processo. Nada de eureca. Nada de epifania. Nada de conclusão mágica, só uns minutos perdidos tentando compreender porque deixava Angélica se aproximar dele desse jeito – e porque se punia, já que não queria estar com ela.

Era apenas uma questão de sofrimento auto-induzido, de novelização de um drama já tão velho e tão comum.

“Todas as pessoas fazem isso”, pensou, dando os ombros a um suspiro que saia de mansinho de cima da sua cama. Deu as costas e seguiu com seu drinque punk-chick até a sacada. Acendeu um cigarro de cravo, daqueles bem enjoativos. Encaixou-o na piteira, comprada por bons sete reais na tabacaria do shopping mais próximo, e soltou uma baforada gostosa, desenhando aneizinhos de fumaça no ar.

Angélica se arrastou pela casa, um ser etéreo enrolado no lençol. Parou atrás de Tiago e pediu um trago da bebida e roubou uma baforada do cigarro. Ficou lá, esperando ele dizer alguma coisa. Os dois olhares se cruzaram em diálogo e ela entendeu algumas coisas, mas como era de sua índole, respondeu rapidamente e metralhando-o com palavras soltas sem respirar:

– Querido, não tem porque me olhar com esse ódio todo. A culpa não é minha, mas eu me sujeito a isso. Afinal, já não falamos que não vamos namorar e que eu não vou largar do Henrique para ficar com você. Não estou me iludindo. E você também não está se iludindo, afinal, ainda sai com minha irmã bancando o namoradinho perfeito, não é mesmo?

Ele engoliu quadrado aquele gole de bebida, que desceu como veneno destruindo tudo o que havia entre a garganta e o estômago.

– Angel, você consegue ser uma filha da puta quando quer, não é? Você sabe que sempre prometemos que essas trepadas não se repetirão, mas estamos sempre caindo no mesmo erro. E a foda é boa. Sinceramente, odeio ter que ficar mentindo toda vez que falamos “tchau”. Já pensou em parar com a hipocrisia e deixar a vida seguir assim?

Ela tomou-lhe o copo das mãos, devolvendo o cigarro.

– Ti, não é questão de hipocrisia. Você sabe que fazemos essas promessas vazias para que possamos dormir sossegados depois. Não tem como negar que você continua me comendo porque não quer assumir nada com ninguém. A minha irmã é só uma desculpa. Você pega a virgenzinha recatada porque não quer se apaixonar e sai com a irmã vagabunda porque o risco é menor ainda.

E o que tinha descido queimando pareceu explodir, abrindo um buraco no estômago e arrasando com o que estivesse próximo. Provavelmente a cara de Tiago retorceu-se e aquele “good morning” estampado ao fundo da sala pareceu uma placa de caminhão vindo em sua direção – maldita legenda amarela.

– Creio que essa careta tenha algum significado, Ti. Agora temos um ponto. Você não assume que não quer se relacionar. Sou apenas uma desculpa. E promessas vazias o tornam mais humano, não é?

Rolou a língua pela céu da boca, havia algo estranho no sabor do cigarro. Ou era só o sabor da derrota.

Não respondeu nada. Colocou a calça, vestiu a camisa, calçou as botas e desligou o aparelho de DVD. Foi até a porta, olhou para trás para encarar os olhos cor de mel de Angélica. Ela sorriu de volta.

– Por favor, Angel. Ao sair, coloque comida para o gato e esvazie o cinzeiro, tudo bem?

Desceu a pé os dezoito andares de seu prédio.

Em alguns minutos estaria embarcando para o trabalho, mas resolveu deixar algumas palavras anotadas em um bilhete, aos cuidados do porteiro e endereçadas a Angélica:

“Não se preocupe, você tem razão, mas é dificil assumir que um pouco de normalidade é bom para manter a sanidade”.

Entrou no ônibus desejando que a vida moderna fosse um pouco mais simples e que as relações que mantinha fossem bem diferentes do que eram de fato. Talvez esse fosse o motivo por assistir tantos filmes com legenda em idiomas originais: decifrar o incompreensível ainda era possível, desde que fosse em uma obra de ficção.

No letreiro do ônibus piscavam as palavras em amarelo: “bom dia”.

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Este é um texto de minha autoria, o título dele que é "Tradução Livre" (para evitar problemas com os distraídos que possam achar que eu traduzi e não coloquei o autor). Foi escrito em 30 de março de 2010, data corrente. É ficcional, mas como toda ficção a gente pega as histórias que ouvimos, as nossas visões e misturamos com o que inventamos pra criar algo representativo.